Dunker: “A Indústria do Sofrimento é uma Poderosa Força Econômica”
VICE: A transformação da vida em condomínio deixa clara a
invasão do espaço público pelo privado. Quais os perigos disso e as
implicações em nosso sofrimento?
Christian Dunker: A tese do livro é que a gente pode entender o
condomínio mais além da forma concreta de vida entre muros, como uma
espécie de patologia das nossas relações com o outro e com o espaço
social, no sentido de que os condomínios [físicos] proliferam no Brasil
num momento em que o Estado se demite da função de organizar o espaço
público. Ele entrega isso para iniciativas independentes que vão ter
muita autonomia para definir quais são as regras e a maneira de habitar
aquele espaço que não é mais exatamente público. É uma espécie de
concessão. Do outro lado, a gente tem uma certa alteração desse modo de
vida dentro do condomínio, na medida em que se força e se cria
artificialmente uma vida entre iguais. É uma vida em que você desaprende
a lidar com as diferenças. É um berçário para modos muito
empobrecedores de estar com o outro, nos deixando vulneráveis ao consumo
de álcool e drogas de forma superexagerada, à agressividade e à
violência de uma forma disruptiva – como eu não sei lidar com a
diferença, ela acaba sendo uma espécie de ofensa à minha existência.
Fica-se vulnerável ao tédio, à apatia, ao excesso da relação com o
trabalho, a uma espécie de hiperinflação da produtividade. Quando você
cria essa vida em condomínio, a vida privada passa a ser um pouco mais
gerida por regras do espaço público. Então, a gente tem os clássicos
sintomas do sentimento de inautenticidade, do sentimento de
esvaziamento, de que você está permanentemente representando uma espécie
de papel.
É um ataque à subjetividade, que é justamente o que nos diferencia?
É um ataque, mas sempre justificado como defesa. Eu preciso fazer isso
porque o outro, o mundo lá fora é perigoso. Para que eu tenha uma vida
viável, funcional e protegida, eu preciso fazer isso. Sobreviver passa a
ser um grande ideal. Mas isso é muito pouco. O tipo de encrenca que
isso traz não é do tipo da psicopatologia clássica, como uma depressão
ou um pânico, mas é o empobrecimento da experiência. E a partir disso
você tem a potencialização dos sintomas mais clássicos.
Qual o papel do sofrimento na vida de um sujeito e por que ele ganhou a conotação de algo a ser combatido ou eliminado?
Há uma história das nossas formas de sofrer. Até o século 19, o
sofrimento tinha uma conotação moral muito definida pela experiência
religiosa. No nosso caso, judaico-cristã, que prescrevia uma maneira de
estar no mundo mais ou menos hegemônica e que passava pelo sofrimento,
por uma associação entre amar e sofrer: “Cristo se sacrificou por nós na
cruz”. Esse é um modelo de ato de amor, e inclui santos martirizados,
heróis que se doam. A partir do século 20, e principalmente depois da
Segunda Guerra Mundial, há uma desconexão dessas coisas e o sofrimento
passa a ser entendido como uma espécie de incontingência indesejável.
Uma vida pode ser vivida com zero sofrimento. Isso mudou muito nossa
relação com a morte, que passou a ser mais e mais intolerável e
impronunciável. Isso mudou nossa relação com perdas, desencontros, com a
infelicidade… a infelicidade passa a ser signo de fracasso. Isso é
constranger o sofrimento para uma dimensão implausível. O sofrimento
acontece e a gente tem que enfrentá-lo, e ao mesmo tempo, você tem que
lidar com o fato de estar sofrendo, porque os verdadeiros winners não
sofrem. Esses winners, pra nós, têm uma vida em contínuo conforto,
proteção e felicidade. Isso virou uma política de estado. Há um certo
reconhecimento de que o sofrimento é um fator político. Existe uma
espécie de política, não ligada a partidos, que define qual tipo de
sofrimento é o legítimo, qual deve ser silenciado, qual merece a atenção
do Estado.
Em um mundo com leis temos que aprender a nos divertir. Tem como aprender a sofrer?
Existe esse aprendizado, sim, porque sofrer não é sentir dor. O
sofrimento é uma experiência que implica em você narrativizar algo, que
pode ser tanto da ordem do mal-estar quanto da dor. Tem gente que cria
histórias intermináveis em torno daquela dor no joelho direito e que, no
fundo, lembra a dor que a tia tinha. Na verdade, os médicos não sabem o
que fazer com isso, mas dá uma boa história. Nosso sofrimento muda se
eu tenho alguém que me reconhece e que me escuta. A natureza da
experiência se transforma conforme a gente fala dela ou não.Outro ponto
importante é que o sofrimento é uma espécie de enlaçador social. O
sofrimento aproxima as pessoas. Veja o discurso tão trivial no funeral
de que “a gente só se encontra nessa hora”. É nessa hora que a história
da família é reatualizada, as lembranças são feitas, novas ideias
surgem. Numa civilização em que encontrar se tornou quase um sinônimo de
esbarrar com os outros, o sofrimento é um lugar que ainda tem força
simbólica para justificar que a gente precisa contar uma história
juntos. Assim como o funeral, isso funciona no desemprego, no fim do
relacionamento. Além disso, o sofrimento tem sentido político porque ele
coloca, quase que espontaneamente, uma alternativa. “Diante disso, o
que vou fazer? Vou me transformar, ou transformar o mundo?”. O mundo, o
outro, faz sofrer também.
Quais são as estratégias de vida criadas pra fugir do desprazer da vida condominial?
Acho que a gente ainda está no momento em que não se dá conta de que
essa forma de vida cria problemas. Ela ainda é, pra muita gente, um
ideal de consumo e de vida. Mas você vai ter que lidar com alguns
problemas, principalmente, com algumas formas de tratamento
prêt-à-porter do seu sofrimento. Uma coisa que a gente vê muito na
clínica é uma certa atitude dos pais de terem uma expectativa escolar
condominial em relação aos filhos. Eles querem pôr câmeras dentro das
salas e dizem “sou consumidor, quero que meu filho tenha um tratamento x
e que não tenha mais pau no gato”. Isso é caso real. Não tem mais lobo,
não tem mais copo de veneno em cima do piano, não tem mais sofrimento
que vem de fora. O sofrimento não vem das nossas fantasias, dos nossos
demônios internos… O sofrimento vem quando se conta uma história ruim e a
criança não consegue dormir mais à noite. É o exagero do máximo do
sintoma condominial dentro da escola. Porque é a crença de que, se você
constrói muros e não tem contato com a coisa, a coisa não acontece. Se
eu puser um muro entre eu e a morte, não tem morte. Se eu puser um muro
entre eu e a bruxa, eu e o lobo mau, não tem bruxa nem lobo mau.
É como se o inimigo fosse sempre externo, jamais a pessoa ao seu lado…
Exatamente. Nunca é um como você. O problema é que você nunca acha um
como você. Mesmo aquele que parece tanto, no fundo, naquela hora H se
revelou outro. Ele tem uma coisa que eu num consigo admitir, eu não
tenho esse traço.
Como o ato de diagnosticar tem pautado nossas vidas?
O diagnóstico é um procedimento médico. Pelo diagnóstico, eu digo “você
merece tratamento, tem direito a cidadania e a saúde”. Eu estou abrindo a
catraca e dizendo “você entra, você não”. O diagnóstico passou a ter
uma função um pouquinho diferente da sua originária, que era coordenar
procedimentos clínicos, e passou a ser fator de inclusão na cidadania,
de acesso ao plano de saúde. Hoje, a racionalidade diagnóstica que
nasceu na clínica se expandiu para as empresas, por meio dos processos
de mentoring, coaching, acompanhamento continuado. Você fechou seu
balanço? Não? Então vamos diagnosticar e agir sobre o problema. Dá pra
ver isso nas escolas também, com os professores se perguntando “eu dou
um tempo extra para esse aluno com dislexia? Quanto tempo devo dar?”.
Você pode pensar isso no universo jurídico, no das relações humanas. Há
20 anos, você ter um diagnóstico era uma coisa vergonhosa, pois era
percebido como alguém deficiente. Hoje é banal você dizer “olha, não vou
poder sair com você hoje porque sou deprimido”. “Aquela vez que eu te
xinguei é porque eu tenho transtorno bipolar”. As justificativas com
diagnóstico passaram a ser parte da nossa conversa comum.
Por que a psicanálise costuma não nomear o sofrimento do paciente?
Ela nomeia também, mas de uma maneira mais atenta ao fato de que essa pessoa tem uma maneira singular de sofrer.
Mas ela não comunica isso ao paciente, comunica?
Às vezes, sim, mas o diagnóstico não é feito tomando por base uma
espécie de vocabulário ou de dicionário constituído para todo mundo. A
psicanálise usa uma espécie de código que o paciente traz. “A minha tia
me chamava de torto.” Torto é um diagnóstico. Então, a gente extrai isso
dos pacientes e leva em conta o autodiagnóstico.
De que maneira o diagnóstico se revela fundamental para as relações de produção e consumo?
Isso foi um mercado descoberto a partir dos anos 60 com as famosas donas
de casa norte-americanas ansiosas e que de repente descobriram que isso
tinha cura. Chamava-se Vallium. É uma indústria bastante recente, e
cada novo antidepressivo toma bilhões em desenvolvimento,
experimentação, marketing. Você pega o manual estatístico e diagnóstico
publicado pela Associação Psiquiátrica Americana. Desde 1962 ele vai
evoluindo e absorvendo demandas e favorescências dessa indústria. O
último, o DSM-5, publicado em 2014, gerou uma reação mundial de repúdio
porque 72% das pessoas que participaram da elaboração desse código são
funcionários da indústria farmacêutica. A chance de o cara pensar que
existe um medicamento para depressão, mas não existe medicamento para
uma histeria é grande, então por que não escolher depressão e dizer que a
histeria acabou? Ah, incrível! Tem doenças que não têm mais, e outras
foram criadas. A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica.
Você tem que produzir sofrimento, tem que dizer para as pessoas que
aquilo é um problema, tem que produzir uma epidemia de depressão e aí
você diz “agora eu tenho a cura”.
De que maneira o cinema brasileiro da Retomada (pós 1994)
pode nos mostrar que a nomeação do mal-estar é uma estratégia política?
Uma peculiaridade do cinema brasileiro desse momento é que ele tomou
para si a responsabilidade de refazer discursivamente as nossas formas
de sofrimento na pós-ditadura. Havia o Cinema Novo, que era um projeto
de repensar o Brasil a partir desse discurso e era uma forte inspiração
para o reconhecimento de formas de sofrimento. Terra em Transe, ao
mostrar o povo sendo assassinado pelas costas, deu visibilidade para
isso, e é um ato sumamente político e estético e psicológico, pois está
ensinando às pessoas que essa é uma forma de sofrimento que merece ser
reconhecida. A estética da fome acabou sendo violentamente interrompida.
Então, o que temos no Cinema da Retomada é uma tentativa de recontar a
história. Quais são os ambientes? O condomínio, as prisões, o morro
(Cidade de Deus, Carandiru). Temos as narrativas de vingança porque você
entende que a história recente teve um hiato, uma sacanagem em que você
não conseguiu se exprimir, então foi preciso inventar formas de captar
ou traduzir o mal-estar. Na Retomada, as pessoas que vinham de um outro
universo, do cinema publicitário. É um pessoal que viveu a globalização
na pele, viveu outras regras do processo produtivo e está pensando no
sofrimento de uma outra forma. Não é mais campo e cidade, num é mais o
trabalho alienado. É um cinema onde a violência tem um outro sentido.
Não é mais efeito da luta de classes. É uma violência hobbesiana, de
todos contra todos, errática. É uma violência que vai conversar com essa
hipótese consensual de que a defesa é ir pra essa sua cidade interna,
pro seu condomínio.
Lembro que, por volta de 2002, 2003, época de lançamento de O
Invasor, Cidade de Deus e Carandiru, mesmo com o sucesso de público,
havia certa rejeição das pessoas em admitir aquilo como o país em que
elas viviam. Como se fosse um Brasil distante delas.
Um dos sentidos da Retomada é colocar o Brasil em pauta de novo. Porque o
que o hiato da ditadura fez? Criou uma espécie de cegueira para o
tamanho da encrenca. Tanto que havia uma discussão sobre o que é o
Brasil no seu conjunto de contradições, e que desapareceu. E justamente
no momento desse desaparecimento, as pessoas começaram a ir para
condomínios e a criar essa mentalidade de Maria Antonieta. “Como assim
tem pobreza?” “Eles fazem isso? Porque na minha casa não acontece.” É um
egocentrismo que foi favorecido por políticas de estado e que começa a
ser revisto com esses filmes que devolvem pra gente uma imagem insólita,
diferente. Mas também, se pensar por outro lado, é o momento em que
começam os programas televisivos de exploração da violência. Ratinho,
Datena, em que você saca que a violência é um produto. Porque o
sofrimento é um produto. O outro está sofrendo, eu não, então eu posso
gozar dele desde que eu esteja à distância. Não sou eu.
Depois do ideal de vida murada dos anos 70, 80, 90 e 2000,
observamos um desejo de retorno aos espaços públicos, pelo menos para
entretenimento (fluxos, parques etc). Por que isso ocorre?
Quermesse, carnaval, Virada Cultural, mesmo o Minhocão. Obviamente, a
asfixia e o empobrecimento de uma vida condominial são percebidos pelas
gerações mais jovens. Eles olham pra isso e falam “é isso que eu tenho
que sonhar? Ter um carrinho parado numa graminha e o vizinho enchendo a
paciência? É muito pouco”. Onde é a saída? É o mundo, a rua.
E essa percepção é típica dos jovens?
É, os jovens estão sempre nesta posição admirável de inventar o mundo
que ainda não está. Eles estão dois capítulos à frente. A sensibilidade
do adolescente e do jovem para a dimensão política do sofrimento é muito
mais aguda que a do adulto. Porque a gente chama de tornar-se adulto,
no fundo, resignar-se com sofrimentos. “A vida é assim”. A garotada
ainda não compra isso, felizmente, sem alguma insubmissão e revolta.
Entrevista com o Psicanalista Christian Dunker
Entrevista de Amanda Mont’Alvão Veloso para o site Vice
Para conhecer Christian Dunker: https://www.youtube.com/channel/UCF6VjYfikYP2vfUx3c6GvVw